A final começara com o sol parisiense a iluminar o pó de tijolo do court, mas já haviam passado mais de quatro horas do arranque do encontro. A terra batida já não estava toda iluminada, o tempo não mente e, por isso, as sombras prevaleciam.
O Court Philippe-Chatrier não era um honesto cenário soalheiro, mas um matreiro palco com tons escuros, com nuances, com distintos tons, como se fossem as gradações de uma tela cheia de mistérios por desvendar. Foi neste pano visual complexo que a final de Roland-Garros se decidiu, um duelo que iniciara ao arranque da tarde e iria terminar ao fim do dia parisiense.
Tal como as nuances da luz, também as nuances da batalha que entregou a Taça dos Mosqueiros estavam bem evidentes, podendo confundir os mais distraídos. E, nesses cinzentos entre o banco e o preto, prevaleceu o talento, o génio, a fibra competitiva.
Sem ganhar em linha reta, sem fazer uma exibição perfeita, sem ser sempre luminoso, mas tendo sombras como as do court, Carlos Alcaraz ganhou Roland-Garros. Passadas quatro horas e 20 minutos, o prodígio murciano triunfou por 6-3, 2-6, 5-7, 6-1 e 6-2. Aos 21 anos, é já rei de majors em todas as superfícies, na terra batida de Roland-Garros, na relva de Wimbledon, no piso rápido do US Open.
Mas talvez nada signifique tanto para ele como beijar a terra batida de Paris, a terra prometida para o seu país, a terra abençoada por Rafa Nadal. Depois dos 14 títulos do seu compatriota, o primeiro de Carlitos. Os espanhóis foram os melhores no lado masculino de Roland-Garros em 19 das derradeiras 31 edições.
Após Iga Swiatek, outro tenista cheio de ligações emocionais a Nadal ganha nesta edição. Podes derrotar o mito, mas não podes derrotar o legado. Podes derrotar o jogador, mas não derrotas a lenda.
O encontro abriu com uma dupla falta de Zverev, erro a dobrar que talvez tenha dado o mote para uma tarde prolongada cheia de tensão e nervosismo, pressão e entusiasmo, mas marcada por equívocos mútuos. O encontro foi uma montanha-russa, uma sucessão de subidas e descidas de nível, uma batalha pela sobrevivência nos momentos-chave e não uma exibição de acertos dignos de craques ao longo de muito tempo seguido.
Depois de Sascha ter cedido o serviço logo à primeira oportunidade, Carlitos respondeu na mesma moeda. Mas, depois do triunfo contra Sinner, Alcaraz surgiu mais leve e solto, movimentando-se no court com a sua melhor leveza. Quando era pequeno, o espanhol visitou Roland-Garros na companhia de Carlos Santos, o seu primeiro treinador, e no primeiro set pareceu homenagear esse Carlos criança, voando como se faz nos sonhos.
Conseguindo impor-se ao saque do alemão em três ocasiões, o murciano triunfou no parcial inaugural por 6-3. Confirmava-se, então, uma ideia clara: a final só iria para Zverev se este servisse ao seu melhor e se Alcaraz baixasse o nível. E foi o que sucederia nos segundo e terceiro sets.
Entre a segunda e a terceira partidas, o filho de pais russos encadeou uma série de cinco jogos de serviço em que não cedeu qualquer ponto em quatro. Por momentos, Zverev pareceu o melhor Zverev que Zverev pode ser, um gigante de 1,98 metros — teria sido o mais alto vencedor de Roland-Garros da história —que desfere bombas impossíveis de responder no golpe de saída, juntando a isso consistência do fundo do court e uma excelente esquerda.
Sascha ganhou o segundo parcial por 6-2 mas, quando parecia por cima da contenda, Alcaraz subiu para o topo da montanha-russa. Aí está a final versão sobe e desce: Carlitos quase não conseguia ganhar pontos no jogo de serviço do seu adversário… até que o quebrou, e em branco.
E voltámos, depois, à montanha-russa.
Quando serviu para ganhar no segundo set, o espanhol pareceu desaparecer de Paris. O corpo estava lá, mas a mente não. A face não tinha aquele esgar de energia, aquela fome, os huevos e o corazón que ele tanto partilha nas redes sociais. Ausente, Alcaraz perdeu o seu serviço em duas ocasiões seguidas. Do 2-1 para o mais novo para o 2-1 para o mais velho. Zverev, que já batera o espanhol no Open da Austrália, estava a uma partida do seu primeiro torneio do Grand Slam.
E voltámos à montanha-russa. Só que do outro lado.
Se a mente de Alcaraz abandonou o corpo do murciano a dado momento do terceiro parcial, no quarto não foi a mente de Zverev a abandoná-lo. Foi mesmo a pior parte da cabeça do alemão a emergir no court.
Talvez nesta fase tenha sido mais claro que nunca que esta era uma final de alternância de momentos maus, definida mais por quem lidava melhor com essas inconsistências do que por quem brilhava mais. O campeão olímpico, que pouco antes servia que nem um colosso, pareceu deixar de o conseguir fazer. Carlitos consegui três breaks e forçou uma quinta partida.
Nas últimas 20 edições do grande torneio do pó de tijolo, foi apenas a segunda final decidida no quinto set. Depois do triunfo de Novak Djokovic contra Stefanos Tsitsipas em 2021, a de Zverev contra Alcaraz em 2024.
No quinto set, os monstros de Zverev voltaram a vir ao de cima. Ofereceu possibilidades de break, foi inconsistente, refilou com o árbitro, esbracejou para a bancada. Depois de 22 títulos ATP, de duas ATP Finals e do ouro de Tóquio, ainda não foi desta que se consagrou num major.
Ali, com as sombras a cair sobre o court e a tarde a querer dar lugar à noite, prevaleceu o talento. A fibra de campeão. Prevaleceu o punho cerrado de Alcaraz quando ganhava pontos, os sprints à Usain Bolt completados por um toque de bola de artesão.
Os dois estavam exaustos, o público aplaudia. Carlitos aproveitou as oportunidades e afastou-as quando surgiram para o lado de Zverev. Com 4-2 no marcador, o murciano inventou um ponto ganhante através de um slice improvisado. Foi ajudado pela rede, como se os deuses do ténis estivessem do lado do génio precoce.
Ao primeiro match point, Alcaraz ganhou o direito a tocar na Taça dos Mosqueteiros. Ganhou o direito a conquistar a terra prometida, o local que fascina os espanhóis, que consagrou Nadal, que ele visitou em criança. Depois das dúvidas provocadas pelas lesões que o atormentaram durante a primeira parte do ano, Carlos mostra que o seu génio também vence quando, para vencer, é preciso sobreviver.