À Isabel, ao José e ao Francisco, seus filhos
1 Um dia, corria o verão de 1987, José António Saraiva, então director do Expresso, chamou-me inesperadamente ao seu gabinete. Estava sozinho, tinha cara de caso, espantei-me: “Acabo de receber uma coisa extraordinária, não sei que faça, olhe para isto…” Abriu uma gaveta: era uma sondagem de largo espectro onde se “lia” à transparência, uma estreia absoluta na política portuguesa. Tratava-se da antecipação da primeira maioria absoluta de Cavaco Silva nas eleições a realizar um mês depois. Estávamos atónitos.
Convocadas pelo Presidente Soares, trava-se de uma iniciativa eleitoral inesperada, motivadas pela queda do governo minoritário do PSD, mercê de uma moção de censura parlamentar. Sabia-“se” que o Executivo de Cavaco Silva mostrara ânimo e exibira velocidade no instinto reformista, o que o país apreciara. Mas daí àquelas cifras que nos pareciam astronómicas, que distância ia afinal, que apanhava tão desprevenidos o então director do Expresso e eu própria?
2 O Zé António tinha gestos destes comigo, um misto de desabafos, considerandos, pequenas confidências, troca de informações que o acesso de cada um proporcionava ao outro e que “analisávamos” ambos. Coisas assim.
Coisas – factos, imagens, ocorrências, conversas com sintonia ou dessintonia, recordações avulsas sem data e talvez sem propósito — que hoje lembro, com uma melancolia fininha, sabendo que o tempo – tanto tempo — as capturou para sempre. Deixando-me, face a uma morte brutal cujo anúncio eu inteiramente desconhecia, como uma espécie de sem abrigo desse passado que tão vital foi para mim e do qual o Zé António fez parte inteira e com assinatura.
Era um jornalista sui-generis. Tão sui-generis que, uma vez ou outra, quase me parecia vindo de Marte, pelo desconcerto que podia causar, fosse pelas opiniões que emitia; por um raciocínio que subitamente irrompia da sua voz cadenciada; pelas surpreendentes conclusões a que chegava, que pareciam estranhamente destoar da realidade como ela se nos apresentava. Nada tinha a ver com um defeito, longe disso, era uma característica constitutiva da sua forma de ser. Era aquela sua tão singular “forma mentis”.
3 José António Saraiva vinha da arquitectura, desaguou no jornalismo para ficar e nunca saberei se de facto era um arquitecto “doublé” de jornalista, se um jornalista “doublé” de arquitecto, o que sei é que era nessa dupla condição que encenava os seus textos: marcando o quadro de um raciocínio baseado no esquadro e na régua da razão, muito mais do que no instinto; ou na mera informação; desenhando a sua análise na linha recta de uma lucidez e de uma observação da natureza humana das quais se orgulhava; usando de uma escrita tão permanentemente sincopada que às vezes mais parecia descarnada das próprias palavras. Mas era assim que escrevia, inesquecíveis textos alguns deles, indispensáveis, outros mas sempre obrigatórios, mesmo quando, como por vezes sucedia, desconcertavam antes do mais. Antes de alcançarmos — se fôssemos capazes — o que devíamos percepcionar por detrás do desconcerto. Entrou no Expresso ainda a revolução não tinha dez anos de idade e só saiu para “inventar” um novo jornal. Foram anos muitos felizes de trabalho na mais inteira liberdade de imaginar, propor, discutir, fazer. De estar “ali”, na Duque de Palmela, no meio de uma redação magnífica, fazendo inteiramente parte dela por mérito e com uma cumplicidade com o Zé António que, mesmo quando esse espírito incluía a impaciência ou o vivo desacordo, durava. Durou. E não foi senão tudo isto que recordei há dias, na igreja da Santíssima Trindade de Miraflores, onde me fui despedir do meu amigo e abraçar a sua família.
4 Tempos depois de trocar de morada, encontrei-o um dia entusiasmadíssimo no seu novo gabinete, a contas com a pré-produção do jornal que ia nascer – O Sol. A forma do seu entusiasmo era de baixo grau — não exibia sentimentos, nem estados de alma; o conteúdo, lembro-me bem, era de altíssima temperatura: “ia fazer um jornal que ultrapassaria o Expresso e não havia de passar muito tempo”.
“Credo, Zé António”, retorqui-lhe eu, descrente da façanha e agarrando-me à salvífica bengala da interjeição “credo”. Não aconteceu o que ele previa mas não pude deixar de reter o desmedido empenho posto naquele auto-desafio. A vida passava, de vez em quando falávamos.
Há poucos meses mandou-me uma mensagem carinhosa por causa de uma carteira profissional (cuja ausência, em cartão plastificado, pulverizaria automaticamente, segundo alguns, todo o trabalho feito entretanto) sinalizando-me seu desconforto. Mas no fundo o que aquela mensagem me transmitia era uma “presença”: a sua, comigo, mesmo que longe. E não foi senão tudo isto que recordei há dias na igreja da Santíssima Trindade de Miraflores onde me fui despedir do meu amigo e abraçar a sua família.
O tempo pesa sobre as coisas e a sua passada apressada confere-me a implacável lucidez de saber que as coisas amadas não voltam. É verdade que o jornalismo era outro, o país também, o mundo também e a vida também. E que, hoje, nem o jornalismo, nem o país, nem o mundo, nem a vida são o que já conseguimos que fossem. Nós, os cidadãos, os jornalistas , os portugueses. Nós, cidadãos nacionais, europeus e habitantes deste mundo, já fizemos melhor e conseguimos mais.
A mágoa, tão fininha como a melancolia do titulo, permite-me a dúvida: “ce fut plus beau parce que ce fut inutile?”
PS: 1. Um mistério: o primeiro-ministro que vi há quarenta e oito horas, no écrã da CNN não foi o mesmo que vi ontem à tarde, sentado na bancada governamental do parlamento. Na segunda-feira à noite nada faria prever que aquele cavalheiro sóbrio, sorridente, sereno, sem precisar de jogar à defesa, sem sombra de tensão ou crispação, que conduzia himself a entrevista que lhe estava a ser feita televisivamente, iria quase parecer um sem abrigo a bater à porta de um endinheirado arrogante? Só faltou Luís Montenegro e Pedro Duarte terem oferecido o próprio governo ao PS. Porque deixaram para a 25ª hora o que tinham para oferecer a um PS já decidido e sempre malcriado, a troco da manutenção governativa? Quanta pressão de última hora, quanto ansiedade, quanta obsessão na inverosimilhança de colocar o PS como culpado único pelo desenlace de uma história infeliz e infelizmente sempre mal conduzida. Quanta ausência de política. Um mistério e uma péssima surpresa… quando tudo era afinal mais que previsível
2. Quanta arrogância na bancada socialista, quanto uso do insulto, quanto abuso da sobranceria – Brilhante Dias é olímpico! – quanta imprudente ilusão de vitória. O excesso de autoconfiança é uma armadilha política mas eles não perceberam.
3. E quanta mentira no BE – hesito entre a má-fé, a ignorância, o desespero. Ficaram incólumes da mentira, claro. Mas talvez não dos votos dos bons velhos tempos, irremediavelmente já perdidos para sempre. Fazer política com o estatuto do irremediável não deve ser sedutor.
4. Quanta inutilidade naquele espectáculo geral, tão pouco abonatório. Tão danoso para o país, tão imbecilmente produtor de incerteza. Pior era impossível.
5. E no entanto… Portugal já viu actuar politicamente Luís Montenegro como chefe do Governo. Não estava assim tão descontente nem com o primeiro-ministro, nem com o seu Executivo. Também já viu Pedro Nuno Santos em acção como chefe da família socialista e como líder da oposição. Não parecia apreciar por aí além nem um, nem outro. Isto é, o país pode comparar dois entendimentos respectivos de fazer e interpretar a política. Teve mais de um ano de “observação” em directo e ao vivo. Vai ser interessante ver como guardado estava o bocado. O que é outra forma de dizer que o desfecho desta tão pecaminosa saga pode ser menos pecaminoso do que a própria saga.